Fala-se muito
do assistencialismo do governo federal e da adoção de medidas de combate à fome
e à pobreza. Esmolas, financiamento político ou transferência de renda para
a classe mais pobre?
O Programa Bolsa Família, por exemplo, é elogiado por organismos no mundo todo mas, por outro lado, é também alvo de muitas críticas. Muitas pessoas consideram o programa eleitoreiro e o rotulam como “assistencialista”, uma vez que não se preocupa em proporcionar às famílias uma base para que possam buscar seu sustento através do próprio esforço e trabalho.
No entanto, em
que pesem as opiniões contrárias, o programa tem resultados positivos país
afora. E estes resultados são comentados pela socióloga Walquiria Leão Rego,
que escreveu o livro "Vozes do Bolsa Família – Autonomia, Dinheiro
e Cidadania".
Reproduzimos
abaixo alguns trechos da entrevista concedida pela autora para a Folha
de São Paulo, veiculada no site da folha on line (www.folha.uol.com.br), em 12/06/2013.
Dentre outros
aspectos, a socióloga destaca que o Brasil é um país com muitas
desigualdades sociais e pessoas vivendo em condições muito desfavoráveis,
por isso é necessário que haja uma política de Estado que oportunize o direito à
renda básica a fim de que as pessoas possam viver com um mínimo de dignidade. A
socióloga pondera ainda que a elite brasileira é um tanto cruel e indiferente
aos problemas dessa parcela tão frágil da população que é atendida pelo Bolsa
Família “muitas pessoas da classe média e alta enxergam o programa com muito
preconceito, não se olha o outro como um concidadão, mas como se fosse uma
espécie de sub-humanidade”.
A socióloga
analisa ainda o enfraquecimento do coronelismo à medida que, no mínimo,
o sustento e alimentação da família, são supridos pela renda do bolsa família. Conseqüentemente,
essas pessoas podem pleitear algo a mais do governo. E, justamente nesse
sentido, a socióloga menciona ainda a importância da adoção de políticas
complementares que oportunizem portas de saída do programa, sobretudo, mais
investimentos em educação.
Leia abaixo e veja mais em:
Bolsa Família
enfraquece o coronelismo e rompe cultura da resignação, diz sociólogo
Dez anos após
sua implantação, o Bolsa Família mudou a vida nos rincões mais pobres do país:
o tradicional coronelismo perde força e a arraigada cultura da resignação está
sendo abalada.
A conclusão é da
socióloga Walquiria Leão Rego, 67, que escreveu, com o filósofo italiano
Alessandro Pinzani, "Vozes do Bolsa Família" (Editora
Unesp, 248 págs., R$ 36).
Durante cinco
anos, entre 2006 e 2011, a dupla realizou entrevistas com os
beneficiários do Bolsa Família e percorreu lugares como o Vale do Jequitinhonha
(MG), o sertão alagoano, o interior do Maranhão, Piauí e Recife. Queriam
investigar o "poder liberatório do dinheiro" provocado pelo programa.
Aproveitando
férias e folgas, eles pagaram do próprio bolso os custos das viagens. Sem se
preocupar com estatística, a pesquisa foi qualitativa e baseada em entrevistas
abertas.
Professora de
teoria da cidadania na Unicamp, Rego defende que o Bolsa Família "é o
início de uma democratização real" do país. Nesta entrevista, ela fala
dos boatos que sacudiram o programa recentemente e dos preconceitos que cercam
a iniciativa: "Nossa elite é muito cruel", afirma.
Folha - Como
explicar o pânico recente no Bolsa Família? Qual o impacto do programa nas
regiões onde a sra. pesquisou?
Walquiria Leão
Rego - Enorme. Basta ver que um boato fez
correr um milhão de pessoas. Isso se espalha pelos radialistas de interior.
Elas [as pessoas] são muito frágeis. Certamente entraram em absoluto
desespero. Poderia ter gerado coisas até mais violentas. Foi de uma crueldade
desmesurada. Foi espalhado o pânico entre pessoas que não têm defesa. Uma coisa
foi a medida administrativa da CEF (Caixa Econômica Federal). Outra coisa é o
que a policia tem que descobrir: onde começou o boato. Fiquei estupefata. Quem
fez isso não tem nem compaixão. Nossa elite é muito cruel. Não estou dizendo
que foi a elite, porque seria uma leviandade.
Folha - Como
assim?
Walquiria Leão
Rego - Tem uma crueldade no modo como as
pessoas falam dos pobres. Daí aparecem os adolescentes que esfaqueiam mendigos
e queimam índios. Há uma crueldade social, uma sociedade com desigualdades
tão profundas e tão antigas. Não se olha o outro como um concidadão, mas
como se fosse uma espécie de sub-humanidade. Certamente essa crueldade vem
da escravidão. Nenhum país tem mais de três séculos de escravidão impunemente.
Folha - Qual
o impacto do Bolsa Família nas relações familiares?
Walquiria Leão
Rego - Ocorreram transformações nelas mesmas.
De repente se ganha uma certa dignidade na vida, algo que nunca se teve, que é
a regularidade de uma renda. Se ganha uma segurança maior e
respeitabilidade. Houve também um impacto econômico e comercial muito grande.
Elas são boas pagadoras e aprenderam a gerir o dinheiro após dez anos de
experiência. Não acho que resolveu o problema. Mas é o início de uma democratização
real, da democratização da democracia brasileira. É inaceitável uma pessoa
se considerar um democrata e achar que não tenha nada a ver com um concidadão
que esteja ali caído na rua. Essa é uma questão pública da maior importância.
Folha - O Bolsa
Família deveria entrar na Constituição?
Walquiria Leão
Rego - A constitucionalização do Bolsa Família
precisava ser feita urgentemente. E a renda tem que ser maior. Esse é um
programa barato, 0,5% do PIB. Acho, também, que as pessoas têm direito à renda
básica. Tem que ser uma política de Estado, que nenhum governo possa
dizer que não tem mais recurso. Mas qualquer política distributiva mexe com
interesses poderosos.
Folha - A
sra. poderia explicar melhor?
Walquiria Leão
Rego - Isso é histórico. A elite brasileira
acha que o Estado é para ela, que não pode ter esse negócio de dar dinheiro
para pobre. Além de o Bolsa Família entrar na Constituição, é preciso ter
outras políticas complementares, políticas culturais específicas. É preciso
ter uma escola pensada para aquela população. É preciso ter outra televisão,
pois essa é a pior possível, não ajuda a desfazer preconceitos. É preciso
organizar um conjunto de políticas articuladas para formar cidadãos.
Folha - A
sra. quer dizer que a ascensão é só de consumidores?
Walquiria Leão
Rego - As pessoas quando saem desse nível de
pobreza não se transformam só em consumidores. A gente se engana. Uma pesquisadora sobre o programa Luz
para Todos, no Vale do Jequitinhonha, perguntou para um senhor o que mais o
tinha impactado com a chegada da luz. A pesquisadora, com seu preconceito de
classe média, já estava pronta para escrever: fui comprar uma televisão.
Mas o senhor disse: 'A coisa que mais me impactou foi ver pela primeira vez o
rosto dos meus filhos dormindo; eu nunca tinha visto'. Essa delicadeza... a
gente se surpreende muito.
Folha - O que a
surpreendeu na sua pesquisa?
Walquiria Leão
Rego - Quando vi a alegria que sentiam de
poder partilhar uma comida que era deles, que não tinha sido pedida. Não tinham
passado pela humilhação de pedi-la; foram lá e compraram. Crianças que comeram
macarrão com salsicha pela primeira vez. É muito preconceituoso dizer que só
querem consumir. A distância entre nós é tão grande que a gente não pode
imaginar. A carência lá é tão absurda. Aprendi que pode ser uma grande
experiência tomar água gelada.
Folha - O Bolsa Família
mexeu com o coronelismo?
Walquiria Leão
Rego - Sim, enfraqueceu o coronelismo. O
dinheiro vem no nome dela, com uma senha dela e é ela que vai ao banco; não tem
que pedir para ninguém. É muito diferente se o governo entregasse o dinheiro ao
prefeito. Num programa que envolve 54 milhões de pessoas, alguma coisa de vez
em quando [acontece]. Mas a fraude é quase zero. O cadastro único é muito bem
feito. Foi uma ação de Estado que enfraqueceu o coronelismo. Elas
aprenderam a usar o 0800 e vão para o telefone público ligar para reclamar.
Essa ideia de que é uma massa passiva de imbecis que não reagem é preconceito
puro.
Folha - E a questão eleitoral?
Walquiria Leão
Rego - O coronel perdeu peso porque ela
adquiriu uma liberdade que não tinha. Não precisa ir ao prefeito. Pode pedir
uma rua melhor, mas não comida, que era por ai que o coronelismo
funcionava. Há resíduos culturais. Ela pode votar no prefeito da família
tal, mas para presidente da República, não.
Folha - Esses votos são do Lula?
Walquiria Leão
Rego - São. Até 2011, quando terminei a
pesquisa, eram. Quando me perguntam por que Lula tem essa força, respondo:
nunca paramos para estudar o peso da fala testemunhal. Todos sabem que ele
passou fome, que é um homem do povo e que sabe o que é pobreza. A figura dele é
muito forte. O lado ruim é que seja muito personalizado. Mas, também, existe
uma identidade partidária, uma capilaridade do PT.
Folha - Há um argumento
que diz que o Bolsa Família é como uma droga que torna o lulismo imbatível nas
urnas. O que a sra. acha?
Walquiria Leão
Rego - Isso é preconceito. A elite
brasileira ignora o seu país e vai ficando dura, insensível. Sente aquele
povo como sendo uma sub-humanidade. Imaginam que essas pessoas são idiotas. Por
R$ 5 por mês eles compram uma parabólica usada. Cheguei uma vez numa casa e
eles estavam vendo TV Senado. Perguntei o motivo. A resposta: 'A gente gosta
porque tem alguma coisa para aprender'.
Folha - No livro a sra. cita muitos casos de
mulheres que fizeram laqueadura. Como é isso?
Walquiria Leão
Rego - O SUS (Sistema Único de Saúde) está
fazendo a pedido delas. É o sonho maior. Aliás, outro preconceito é dizer que
elas vão se encher de filhos para aumentar o Bolsa Família. É supor que sejam
imbecis. O grande sonho é tomar a pílula ou fazer laqueadura.
Folha - A sra. afirma que é preconceito dizer que
as pessoas vão para o Bolsa Família para não trabalhar. Por quê?
Walquiria Leão
Rego - Nessas regiões não há emprego. Eles são chamados ocasionalmente
para, por exemplo, colher feijão. É um trabalho sem nenhum direito e ganham
menos que no Bolsa Família. Não há fábricas; só se vê terra cercada, com
muitos eucaliptos. Os homens do Vale do Jequitinhonha vêm trabalhar aqui
por salários aviltantes. Um fazendeiro disse para o meu marido que não
conseguia mais homens para trabalhar por causa do Bolsa Família. Mas ele pagava
R$ 20 por semana! O cara quer escravo. Paga uma miséria por um trabalho duro de
12, 16 horas, não assina carteira, é autoritário, e acha que as pessoas têm que
se submeter a isso. E dizem que receber dinheiro do Estado é uma vergonha.
Folha - Há vontade de
deixar o Bolsa Família?
Walquiria Leão
Rego – Essas pessoas gostariam de ter emprego,
salário, carteira assinada, férias, direitos. Há também uma pressão social. Ouvem dizer que estão acomodadas. Uma
pesquisa feita em Itaboraí, no Rio de Janeiro, diz que lá elas têm vergonha de
ter o cartão. São vistas como pobres coitadas que dependem do governo para
viver, que são incapazes, vagabundas. Como em "Ralé", de Máximo
Gorki, os pobres repetem a ideologia da elite. A miséria é muito dura.
Folha - A sra. escreve que o Bolsa Família é o
inicio da superação da cultura de resignação? Será?
Walquiria Leão Rego - A cultura da resignação foi muito estudada e é tema da literatura:
Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, José Lins do Rego. Ela tem
componente religioso: 'Deus quis assim'. E mescla elementos culturais: a espera
da chuva, as promessas. Essa cultura da resignação foi rompida pelo Bolsa
Família: a vida pode ser diferente, não é uma repetição. É a hipótese que
eu levanto. Aparece uma coisa nova: é possível e é bom ter uma renda
regular. É possível ter outra vida, não preciso ver meus filhos morrerem de
fome, como minha mãe e minha vó viam. Esse sentimento de que o Brasil está
vivendo uma coisa nova é muito real. Hoje se encontram negras médicas,
dentistas, por causa do ProUni (Universidade para Todos). Depois de dez
anos, o Bolsa Família tem mostrado que é possível melhorar de vida, aprender
coisas novas. Não tem mais o 'Fabiano' [personagem de "Vidas
Secas"], a vida não é tão seca mais.
Livro "VOZES DO BOLSA FAMÍLIA"
AUTOR Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani
EDITORA Editora Unesp
QUANTO R$ 36 (248 págs.)
LANÇAMENTO hoje, às 19h, na Livraria da Vila - Shopping Higienópolis (av. Higienópolis, 618; tel. 0/xx/11/3660-0230)
AUTOR Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani
EDITORA Editora Unesp
QUANTO R$ 36 (248 págs.)
LANÇAMENTO hoje, às 19h, na Livraria da Vila - Shopping Higienópolis (av. Higienópolis, 618; tel. 0/xx/11/3660-0230)
Por Eleonora de
Lucena, de São Paulo
Extraído de: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/06/1293113-bolsa-familia-enfraquece-o-coronelismo-e-rompe-cultura-da-resignacao-diz-sociologa.shtml,
em 12/06/2013
Costumo justamente criticar a não oportunização de portas de saída do programa, contudo, quanto à legitimidade de transferir alguma renda para a parcela mais desfavorecida da população, acho que a frase do Presidente Uruguaio dá o tom da triste realidade que esse povo vive e nos alerta para não tomarmos uma posição tão fria em relação a esse assunto. Existem pessoas acomodadas sim, mas muitos são apenas vítimas que vivem à margem da sociedade.
ResponderExcluirTemos sim que combater a CORRUPÇÃO, pois ela é verdadeiramente a GRANDE VILÃ do nosso país. Quantas dessas pessoas que vivem na miséria são vítimas, diretas ou indiretas, dos atos de corrupção e desvio de recursos públicos que poderiam lhes proporcionar melhores condições de saúde, educação, saneamento, etc...
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