quarta-feira, 12 de junho de 2013

BOLSA-FAMÍLIA: efeitos e resultados

Fala-se muito do assistencialismo do governo federal e da adoção de medidas de combate à fome e à pobreza. Esmolas, financiamento político ou transferência de renda para a classe mais pobre?

O Programa Bolsa Família, por exemplo, é elogiado por organismos no mundo todo mas, por outro lado, é também alvo de muitas críticas. Muitas pessoas consideram o programa eleitoreiro e o rotulam como “assistencialista”, uma vez que não se preocupa em proporcionar às famílias uma base para que possam buscar seu sustento através do próprio esforço e trabalho. 




No entanto, em que pesem as opiniões contrárias, o programa tem resultados positivos país afora. E estes resultados são comentados pela socióloga Walquiria Leão Rego, que escreveu o livro "Vozes do Bolsa Família – Autonomia, Dinheiro e Cidadania".

Reproduzimos abaixo alguns trechos da entrevista concedida pela autora para a Folha de São Paulo, veiculada no site da folha on line (www.folha.uol.com.br), em 12/06/2013.

Dentre outros aspectos, a socióloga destaca que o Brasil é um país com muitas desigualdades sociais e pessoas vivendo em condições muito desfavoráveis, por isso é necessário que haja uma política de Estado que oportunize o direito à renda básica a fim de que as pessoas possam viver com um mínimo de dignidade. A socióloga pondera ainda que a elite brasileira é um tanto cruel e indiferente aos problemas dessa parcela tão frágil da população que é atendida pelo Bolsa Família “muitas pessoas da classe média e alta enxergam o programa com muito preconceito, não se olha o outro como um concidadão, mas como se fosse uma espécie de sub-humanidade”.

A socióloga analisa ainda o enfraquecimento do coronelismo à medida que, no mínimo, o sustento e alimentação da família, são supridos pela renda do bolsa família. Conseqüentemente, essas pessoas podem pleitear algo a mais do governo. E, justamente nesse sentido, a socióloga menciona ainda a importância da adoção de políticas complementares que oportunizem portas de saída do programa, sobretudo, mais investimentos em educação.

Leia abaixo e veja mais em:

 

Bolsa Família enfraquece o coronelismo e rompe cultura da resignação, diz sociólogo

 

Dez anos após sua implantação, o Bolsa Família mudou a vida nos rincões mais pobres do país: o tradicional coronelismo perde força e a arraigada cultura da resignação está sendo abalada.

A conclusão é da socióloga Walquiria Leão Rego, 67, que escreveu, com o filósofo italiano Alessandro Pinzani, "Vozes do Bolsa Família" (Editora Unesp, 248 págs., R$ 36).

Durante cinco anos, entre 2006 e 2011, a dupla realizou entrevistas com os beneficiários do Bolsa Família e percorreu lugares como o Vale do Jequitinhonha (MG), o sertão alagoano, o interior do Maranhão, Piauí e Recife. Queriam investigar o "poder liberatório do dinheiro" provocado pelo programa.

Aproveitando férias e folgas, eles pagaram do próprio bolso os custos das viagens. Sem se preocupar com estatística, a pesquisa foi qualitativa e baseada em entrevistas abertas.
Professora de teoria da cidadania na Unicamp, Rego defende que o Bolsa Família "é o início de uma democratização real" do país. Nesta entrevista, ela fala dos boatos que sacudiram o programa recentemente e dos preconceitos que cercam a iniciativa: "Nossa elite é muito cruel", afirma.

Folha - Como explicar o pânico recente no Bolsa Família? Qual o impacto do programa nas regiões onde a sra. pesquisou?
Walquiria Leão Rego - Enorme. Basta ver que um boato fez correr um milhão de pessoas. Isso se espalha pelos radialistas de interior. Elas [as pessoas] são muito frágeis. Certamente entraram em absoluto desespero. Poderia ter gerado coisas até mais violentas. Foi de uma crueldade desmesurada. Foi espalhado o pânico entre pessoas que não têm defesa. Uma coisa foi a medida administrativa da CEF (Caixa Econômica Federal). Outra coisa é o que a policia tem que descobrir: onde começou o boato. Fiquei estupefata. Quem fez isso não tem nem compaixão. Nossa elite é muito cruel. Não estou dizendo que foi a elite, porque seria uma leviandade.

Folha - Como assim?
Walquiria Leão Rego - Tem uma crueldade no modo como as pessoas falam dos pobres. Daí aparecem os adolescentes que esfaqueiam mendigos e queimam índios. Há uma crueldade social, uma sociedade com desigualdades tão profundas e tão antigas. Não se olha o outro como um concidadão, mas como se fosse uma espécie de sub-humanidade. Certamente essa crueldade vem da escravidão. Nenhum país tem mais de três séculos de escravidão impunemente.

Folha - Qual o impacto do Bolsa Família nas relações familiares?
Walquiria Leão Rego - Ocorreram transformações nelas mesmas. De repente se ganha uma certa dignidade na vida, algo que nunca se teve, que é a regularidade de uma renda. Se ganha uma segurança maior e respeitabilidade. Houve também um impacto econômico e comercial muito grande. Elas são boas pagadoras e aprenderam a gerir o dinheiro após dez anos de experiência. Não acho que resolveu o problema. Mas é o início de uma democratização real, da democratização da democracia brasileira. É inaceitável uma pessoa se considerar um democrata e achar que não tenha nada a ver com um concidadão que esteja ali caído na rua. Essa é uma questão pública da maior importância.

Folha - O Bolsa Família deveria entrar na Constituição?
Walquiria Leão Rego - A constitucionalização do Bolsa Família precisava ser feita urgentemente. E a renda tem que ser maior. Esse é um programa barato, 0,5% do PIB. Acho, também, que as pessoas têm direito à renda básica. Tem que ser uma política de Estado, que nenhum governo possa dizer que não tem mais recurso. Mas qualquer política distributiva mexe com interesses poderosos.

Folha - A sra. poderia explicar melhor?
Walquiria Leão Rego - Isso é histórico. A elite brasileira acha que o Estado é para ela, que não pode ter esse negócio de dar dinheiro para pobre. Além de o Bolsa Família entrar na Constituição, é preciso ter outras políticas complementares, políticas culturais específicas. É preciso ter uma escola pensada para aquela população. É preciso ter outra televisão, pois essa é a pior possível, não ajuda a desfazer preconceitos. É preciso organizar um conjunto de políticas articuladas para formar cidadãos.

Folha - A sra. quer dizer que a ascensão é só de consumidores?
Walquiria Leão Rego - As pessoas quando saem desse nível de pobreza não se transformam só em consumidores. A gente se engana. Uma pesquisadora sobre o programa Luz para Todos, no Vale do Jequitinhonha, perguntou para um senhor o que mais o tinha impactado com a chegada da luz. A pesquisadora, com seu preconceito de classe média, já estava pronta para escrever: fui comprar uma televisão. Mas o senhor disse: 'A coisa que mais me impactou foi ver pela primeira vez o rosto dos meus filhos dormindo; eu nunca tinha visto'. Essa delicadeza... a gente se surpreende muito.

Folha -  O que a surpreendeu na sua pesquisa?
Walquiria Leão Rego - Quando vi a alegria que sentiam de poder partilhar uma comida que era deles, que não tinha sido pedida. Não tinham passado pela humilhação de pedi-la; foram lá e compraram. Crianças que comeram macarrão com salsicha pela primeira vez. É muito preconceituoso dizer que só querem consumir. A distância entre nós é tão grande que a gente não pode imaginar. A carência lá é tão absurda. Aprendi que pode ser uma grande experiência tomar água gelada.

Folha -  O Bolsa Família mexeu com o coronelismo?
Walquiria Leão Rego - Sim, enfraqueceu o coronelismo. O dinheiro vem no nome dela, com uma senha dela e é ela que vai ao banco; não tem que pedir para ninguém. É muito diferente se o governo entregasse o dinheiro ao prefeito. Num programa que envolve 54 milhões de pessoas, alguma coisa de vez em quando [acontece]. Mas a fraude é quase zero. O cadastro único é muito bem feito. Foi uma ação de Estado que enfraqueceu o coronelismo. Elas aprenderam a usar o 0800 e vão para o telefone público ligar para reclamar. Essa ideia de que é uma massa passiva de imbecis que não reagem é preconceito puro.

Folha -  E a questão eleitoral?
Walquiria Leão Rego - O coronel perdeu peso porque ela adquiriu uma liberdade que não tinha. Não precisa ir ao prefeito. Pode pedir uma rua melhor, mas não comida, que era por ai que o coronelismo funcionava. Há resíduos culturais. Ela pode votar no prefeito da família tal, mas para presidente da República, não.

Folha -  Esses votos são do Lula?
Walquiria Leão Rego - São. Até 2011, quando terminei a pesquisa, eram. Quando me perguntam por que Lula tem essa força, respondo: nunca paramos para estudar o peso da fala testemunhal. Todos sabem que ele passou fome, que é um homem do povo e que sabe o que é pobreza. A figura dele é muito forte. O lado ruim é que seja muito personalizado. Mas, também, existe uma identidade partidária, uma capilaridade do PT.

Folha -  Há um argumento que diz que o Bolsa Família é como uma droga que torna o lulismo imbatível nas urnas. O que a sra. acha?
Walquiria Leão Rego - Isso é preconceito. A elite brasileira ignora o seu país e vai ficando dura, insensível. Sente aquele povo como sendo uma sub-humanidade. Imaginam que essas pessoas são idiotas. Por R$ 5 por mês eles compram uma parabólica usada. Cheguei uma vez numa casa e eles estavam vendo TV Senado. Perguntei o motivo. A resposta: 'A gente gosta porque tem alguma coisa para aprender'.

Folha -  No livro a sra. cita muitos casos de mulheres que fizeram laqueadura. Como é isso?
Walquiria Leão Rego - O SUS (Sistema Único de Saúde) está fazendo a pedido delas. É o sonho maior. Aliás, outro preconceito é dizer que elas vão se encher de filhos para aumentar o Bolsa Família. É supor que sejam imbecis. O grande sonho é tomar a pílula ou fazer laqueadura.

Folha -  A sra. afirma que é preconceito dizer que as pessoas vão para o Bolsa Família para não trabalhar. Por quê?
Walquiria Leão Rego - Nessas regiões não há emprego. Eles são chamados ocasionalmente para, por exemplo, colher feijão. É um trabalho sem nenhum direito e ganham menos que no Bolsa Família. Não há fábricas; só se vê terra cercada, com muitos eucaliptos. Os homens do Vale do Jequitinhonha vêm trabalhar aqui por salários aviltantes. Um fazendeiro disse para o meu marido que não conseguia mais homens para trabalhar por causa do Bolsa Família. Mas ele pagava R$ 20 por semana! O cara quer escravo. Paga uma miséria por um trabalho duro de 12, 16 horas, não assina carteira, é autoritário, e acha que as pessoas têm que se submeter a isso. E dizem que receber dinheiro do Estado é uma vergonha.

Folha -  Há vontade de deixar o Bolsa Família?
Walquiria Leão Rego Essas pessoas gostariam de ter emprego, salário, carteira assinada, férias, direitos. Há também uma pressão social. Ouvem dizer que estão acomodadas. Uma pesquisa feita em Itaboraí, no Rio de Janeiro, diz que lá elas têm vergonha de ter o cartão. São vistas como pobres coitadas que dependem do governo para viver, que são incapazes, vagabundas. Como em "Ralé", de Máximo Gorki, os pobres repetem a ideologia da elite. A miséria é muito dura.

Folha -  A sra. escreve que o Bolsa Família é o inicio da superação da cultura de resignação? Será?
Walquiria Leão Rego - A cultura da resignação foi muito estudada e é tema da literatura: Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, José Lins do Rego. Ela tem componente religioso: 'Deus quis assim'. E mescla elementos culturais: a espera da chuva, as promessas. Essa cultura da resignação foi rompida pelo Bolsa Família: a vida pode ser diferente, não é uma repetição. É a hipótese que eu levanto. Aparece uma coisa nova: é possível e é bom ter uma renda regular. É possível ter outra vida, não preciso ver meus filhos morrerem de fome, como minha mãe e minha vó viam. Esse sentimento de que o Brasil está vivendo uma coisa nova é muito real. Hoje se encontram negras médicas, dentistas, por causa do ProUni (Universidade para Todos). Depois de dez anos, o Bolsa Família tem mostrado que é possível melhorar de vida, aprender coisas novas. Não tem mais o 'Fabiano' [personagem de "Vidas Secas"], a vida não é tão seca mais.



Livro "VOZES DO BOLSA FAMÍLIA"
AUTOR Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani
EDITORA Editora Unesp
QUANTO R$ 36 (248 págs.)
LANÇAMENTO hoje, às 19h, na Livraria da Vila - Shopping Higienópolis (av. Higienópolis, 618; tel. 0/xx/11/3660-0230)


Por Eleonora de Lucena, de São Paulo



 

2 comentários:

  1. Costumo justamente criticar a não oportunização de portas de saída do programa, contudo, quanto à legitimidade de transferir alguma renda para a parcela mais desfavorecida da população, acho que a frase do Presidente Uruguaio dá o tom da triste realidade que esse povo vive e nos alerta para não tomarmos uma posição tão fria em relação a esse assunto. Existem pessoas acomodadas sim, mas muitos são apenas vítimas que vivem à margem da sociedade.

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  2. Temos sim que combater a CORRUPÇÃO, pois ela é verdadeiramente a GRANDE VILÃ do nosso país. Quantas dessas pessoas que vivem na miséria são vítimas, diretas ou indiretas, dos atos de corrupção e desvio de recursos públicos que poderiam lhes proporcionar melhores condições de saúde, educação, saneamento, etc...

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